segunda-feira, outubro 09, 2006

Amém

Infelizmente, conheço esse problema da igreja intimamente e levei muito tempo matutando as coisas que via e vivia até chegar a uma conclusão sobre como lidar com isso.

No livro "Anjos e Demônios" (Dan Brown), tem um trecho muito interessante em que a secretária do diretor do CERN observa com tristeza a reação de uma multidão de cientistas que ovacionam a ameaça de destruição do Vaticano por uma bomba de antimatéria (não, não estou de sacanagem, isso tá no livro!!). Enfim, o que importa é que a mulher fica horrorizada por não conseguir conciliar na sua cabeça duas imagens tão radicalmente diferentes da mesma organização: de um lado, a imagem rancorosa dos cientistas, devido a todo um histórico de irracionalidade por parte da igreja e até de perseguição aos homens da ciência (coitado do Galileu...). De outro lado, a imagem da experiência de vida dela, de uma organização que, a despeito das cagadas e desvios de muitas pessoas, lutava para reunir as pessoas aos domingos simplesmente para levantarem juntas os olhos a Deus, pedir e agradecer! Que lutava para reunir crianças no mundo todo em escolas dominicais ou catecismos para ensiná-las a não fazer com os outros o que não gostariam que se fizesse a elas. Havia muita nobreza na experiência dela, que não se compatibilizava com outras desgraças que coexistiam no mesmo lugar.

Eu tenho uma experiência muito longa e intensa com a igreja, que sempre me gerou este tipo de conflito. Fui batizado, frequentei catecismo, fiz primeira comunhão, etc. Nada disso significou muita coisa para mim. Posso dizer que "descobri" a igreja quando já tinha mais consciência da vida, em 1992, ao fazer o curso de crisma. Para um racionalista como eu, nada mais natural do que ser seduzido primeiramente pela lógica, e foi o que aconteceu. A perfeição da doutrina apresentada por Jesus me cativou e veio preencher um vazio triste. A minha criação havia sido muito boa, mas era imperfeita. Foi um choque aprender que ser bondoso com nossos amigos é fácil e que não há muito mérito nisso, porque até um assassino de crianças é capaz desse tipo de bondade. O desafio e a verdadeira bondade estão em sê-lo com as pessoas das quais não gostamos e até com quem nos sacaneia, pelo bem delas e pelo nosso. Aprender a perdoar. Aprender a quebrar a máscara protetora de indiferença e voltar a me deixar incomodar, por exemplo, ao ver um mendigo sentado sobre uma poça do próprio mijo, ou ao ver uma criança pedindo dinheiro ou cheirando cola na rua. Aprender que o que se espera de quem está neste mundo é que acorde para as suas falhas (suas e do mundo) e lute para fazer melhor.

Esta descoberta foi como encontrar uma pepita de ouro em um barranco. Comecei a cavar e a buscar conhecer cada vez mais daquilo que tinha encontrado de bom. Os dez anos seguintes, passei descobrindo o melhor e o pior dentro da igreja, me esforçando para aprender cada vez mais e, depois de algum tempo, para ajudar quem precisava. É claro que minha fé não ficou somente no racional, esse foi só o chamariz para o racionalista que há em mim. O que vi e vivi geraram em mim uma fé que, mesmo pequena, hoje é o pilar da minha vida. Se não fosse por ela, talvez eu não tivesse conseguido me levantar depois de certos períodos de negrume. É por essa fé, nesse ideal e nesse Deus, que eu até hoje norteio a minha peleja para tentar ser o homem que eu tenho que ser.

Mas o que importa nesse post são as idiossincrasias que encontrei, conforme "cavava" em busca do meu ouro. Vou dividir alguns exemplos.

De um lado, vi um padre escrever uma carta para a namorada de um amigo, convidando-a a um caso às escondidas. Vi meus amigos levarem a carta ao conhecimento do superior do tal padre e vi a mesma desaparecer sem que nenhuma providência tivesse sido tomada. Vi um outro casal largar suas atribuições em grupos da igreja por vergonha de uma gravidez precoce, argumentando nervosamente para quem se dispusesse a ouvir que tinha sido "nas coxas" e que, portanto, pelo menos a menina ainda era virgem (!!!). Vi uma catequista ensinar a uma menina que ela não deveria morder a hóstia no momento da comunhão, pois sua boca sangraria se ela o fizesse. Vi um amigo ser forçado a deixar de participar mais ativamente de um grupo, por ter sua homossexualidade descoberta.

No "plano maior", descobri que os dominicanos da "santa" inquisição andavam pela Europa procurando "hereges" para queimar em suas fogueiras, após confessarem até o que não haviam feito em longas sessões de tortura com ferros em brasa e mini-tornos (feitos para quebrar as falanges dos dedos das mãos e dos pés). Descobri que as torturas, quando feitas por alguém experiente, não derramavam uma única gota de sangue, o que seria considerado pecado (!!!). Descobri uma mulher que foi declarada santa por ter furado os olhos dos filhos para que não fossem tentados pelos pecados do mundo. Vi pessoas serem discriminadas por serem descasadas (o que acabou sendo o meu caso, no tal momento mais negro da minha vida) ou por serem homossexuais.

Por outro lado, conheci um padre que dedicou a vida a desenvolver uma catequese voltada para crianças com Síndrome de Down e depois ainda passou duas décadas construindo uma casa onde pudesse funcionar uma creche para estas crianças, filhas de pais pobres. Conheci outro padre que, mesmo aos oitenta anos, chegava a dar o dinheiro dos próprios remédios para quem precisasse alimentar a família. Conheci pessoas que inspiravam o que havia de melhor nos que as cercavam, pelo simples exemplo de vida, sem precisar sequer mencionar as palavras "Deus" ou "Jesus". Conheci gente na qual ninguém mais acreditava, mas que conseguiu, através da simples fé, vencer o vício, virar o jogo e ainda serem capazes de constituir famílias lindas. Conheci pessoas que se revezavam nas madrugadas para levar comida aos moradores de rua. Descobri no meio desses moradores até pessoas com nível universitário, mas que, por loucura, drogas ou bebida, abandonavam suas famílias e passavam a viver na rua, à margem até do nosso olhar. Descobri que muitos empregados da construção civil não ganham o suficiente sequer para conseguir voltar para suas casas todo dia, e contam com as refeições distribuídas por estes grupos de ajuda para sobreviver.

No "plano macro", descobri que, quando da ruína do Império Romano e das instituições de governo mais básicas da Europa e parte da Ásia, bem ou mal, o que ajudou a impedir que a humanidade retornasse à Idade da Pedra foram os hospitais, as escolas e a infra-estrutura da igreja. Descobri um São Francisco de Assis que abriu mão de uma enorme herança para se dedicar aos pobres, não levando de casa sequer as roupas que tinha no corpo, sendo que, até hoje, seus seguidores estão entre os mais despojados e dedicados membros da igreja no auxílio aos pobres. Descobri uma Santa Terezinha que, por meio de sua mera docilidade para com as pessoas que mais lhe agrediam, conseguia constrangê-las e até convertê-las. Descobri comunidades com casas espalhadas pelo mundo todo, onde pessoas vivem e trabalham com o objetivo de prestar auxílio aos sem-teto, drogados e prostituídos.

O sublime e o miserável, no mesmo lugar. Depois de algum tempo, percebi que não deveria haver surpresa quanto a isso, pois a igreja, como qualquer instituição, é feita de gente e, como tal, está sujeita às idiossincrasias e contradições que são inerentes ao ser humano. Não há ninguém que não as tenha, e o Papa não é exceção ("infalibilidade" é o cacete...).

Na verdade, o que ocorre é que, cobrindo o cerne e aquilo que é (deveria ser) mais importante, se acumulam séculos e séculos de grossas camadas de dogmas desnecessários e absurdos inventados por pessoas falhas ou mal-intencionadas, tradições que perderam a função, preconceitos, fardos, armadilhas e preceitos que há muito se desviaram da pedra fundamental, da base de tudo o que Jesus tentou nos mostrar.

É como tentar ler um livro todo sujo e manchado. Mas as palavras estão lá, junto com os ideais, a sabedoria de vida e a fé. É através desse fundamento que, até hoje, com todas as minhas dificuldades e falhas, eu me oriento para tentar me tornar o homem que eu preciso ser. Não posso permitir que o que há de mau me impeça de buscar e de viver aquilo que existe de bom, e existe MUITA coisa sublime.

Quero que minha filha aprenda tudo isso, de bom e de ruim, e que desenvolva uma fé capaz de sustentá-la nos momentos mais negros (até porque não poderei estar ao lado dela para sempre). Ainda acredito que um bom lugar para proporcionar a ela essa experiência de descoberta de Deus é a igreja, mas quero que ela desenvolva senso crítico suficiente para não cair nas armadilhas que existem nem se deixar influenciar pelas artimanhas dos outros.

Não poderia deixar de acrescentar que minha opinião não se restringe à igreja católica, até porque não conheço nenhuma outra igreja que não seja feita também de homens... (rsrsrsrs) Os problemas podem ser diferentes, mas a problemática é a mesma.

Enfim, as igrejas são feitas de padres ou pastores, mas também de todos nós que partilhamos de alguma crença! Precisamos trabalhar para transformá-las em lugares melhores e mais justos, sem nos deixarmos desestimular pelas misérias que nelas habitam. Infelizmente, se formos desistir das coisas e das pessoas por conta das incoerências ou hipocrisias, não nos sobrarão sequer amigos ou família. Sempre há esperança das coisas melhorarem, mas não se desistirmos delas.

E, acima de tudo, nossa fé é somente entre nós e Deus. Ninguém tem o direito de se meter no meio dessa relação. Se não for para facilitar (o que eu acredito que é o papel das igrejas), então que não atrapalhe!

6 comentários:

Jorge disse...

Eu acho que essa dualidade que há na Igreja é normal e concordo com você que sempre vai existir bem ou mal, certo ou errado, em qq lugar onde haja seres humanos. É normal! Porém, temos que sempre buscar acertos, procurar coisas para um mundo melhor e não retrocessos...
De qq forma, adorei o texto e é um prazer dividi-lo debaixo do mesmo teto dos meus. Tá inspirado, irmão!!!

Anônimo disse...

J ,

Vc conseguiu nesse pequeno texto , escrever exatamente o que sinto !!
Não importam as pessoas , que fazem ou desfazem de nossa igreja , e sim a Fé que nós seres humanos temos com esse DEUS maravilhoso!!Também fui discriminada por ser separada , dentro da igreja ao qual acredito , mas em nenhum momento pensei em sair ou desistir e sim em CONTINUAR sempre !!!!
Parabéns !!!

PS: Eu sou amiga da Glaucia , que é amiga do Jorge , e sempre leio o blog de vcs !!

Anônimo disse...

Só vou dizer uma coisa. Uma parte desse seu texto, que diga-se de passagem, não foi pequeno e está muito bem escrito, tinha uma mensagem para mim. O mais legal disso tudo é que voce nem sabe disso, mas eu li e recebi a mensagem. Me ajudou a tomar uma decisao que vai me fazer sentir bem melhor. Queria agradece-lo. Mesmo voce não sabendo o que é, até porque nao vem ao caso, mas achei que seria legal compartilhar com voce isso.
Valeu!
Abração

Anônimo disse...

Jorge: Concordo plenamente (peguei a expressão emprestada do Ed) contigo. Não acho que tenhamos que aceitar retrocessos, de forma nenhuma. Só não devemos virar as costas para o que há de bom, em função do que há de mau. Mas assino embaixo do teu texto e do teu comentário! Dividir o blog contigo tem sido muito bom mesmo!

Angela: "pequeno texto"?? Hehehehehe, até para os meus padrões eu exagerei desta vez! Obrigado pelas palavras e por estar conosco!

Ed: Fico feliz de ter ajudado, mesmo não sabendo no quê! (rsrsrsrsrs) Um dia, de repente, vc me conta.

Abraços para todos!

Anônimo disse...

J, vc sabe que compartilho da mesma opinião! Tenho muito orgulho de ti, pois mesmo tendo passado por um momento bastante conturbado na sua vida, nunca deixou de ter esperança e fé.
Amo vc!
Bjs
Juli

Anônimo disse...

“A virtude é a fortaleza moral da vontade”, dizia Kant. Sim, a virtude não se encontra tão-somente no agir bem. Oh! Infelizmente, o caminho da virtude é um tantinho mais pantanoso. A virtude é o agir bem quando a vontade nos impele para o agir mal. Se as conveniências sempre nos impelem para o Bem, não, não somos virtuosos. O que ocorre é que não nos é dada a oportunidade de sê-lo. De uns tempos para cá, penso que para se contarem as virtudes precisam-se menos ábacos e mais de conta-gotas. Contudo, como ser humano que possui o desejo de sempre acertar, cada gota terá o sabor das grandes vitórias. Felizmente, posso olhar com alegria que, a despeito de minhas faltas, ora pequenas, ora lamentáveis, o frasco não está vazio.