Segundo Mario Quintana, "a alma é aquela coisa que nos faz perguntar se a alma existe".
Uma vez, durante um acampamento, passei a noite numa colina descampada, ao lado de uma fogueira, deitado de barriga para cima olhando para o céu e viajando. Isso causa uma sensação de vertigem estranha, algo como um medo inconsciente de "cair para cima" mas, com um tempinho, dá para acostumar e aproveitar uma das experiências mais legais da vida: olhar para o céu à noite, longe das luzes da cidade.
A gente que vive na cidade, às vezes, passa a vida inteira só olhando para baixo, com o pensamento e os olhos muito voltados para os problemas do dia-a-dia e para o chão. Mesmo quando olhamos para cima e não tem nenhum prédio atrapalhando a visão, a "claridade ambiente" da cidade não nos permite enxergar nem um pentelhésimo do que há para se ver no céu. Essa é uma experiência que só pode ser feita no mato, com uma escuridão quase absoluta, de preferência numa noite sem luar.
Mas, voltando ao que interessa, fiquei muito tempo embasbacado com o que vi. Uma quantidade monstruosa de estrelas e mais estrelas, estrelas cadentes e até nebulosas (ou algo que me pareceu muito com uma nebulosa) logo ali, a olho nú diante de mim! Já chegou de avião a uma metrópole à noite com o céu claro? Pois então, havia mais estrelas naquele céu do que eu já havia visto de luzinhas ao chegar em qualquer cidade. E, quanto mais a visão de acostumava com a escuridão, mais apareciam! Fiquei viajando sobre o colosso que estava diante de mim. Cada pontinho daqueles era um sol. Um sol! E, o mais fantástico, tudo conectado! Ora, se eu estava vendo tudo aquilo, era porque cada sol foi capaz de fazer chegar sua energia em forma de luz até o lugar onde eu estava. Mesmo onde não enxergava nada brilhando, no mais completo negrume, havia alguma coisa, um tecido de energia e de gravidade que permeava aquele espaço todo. A mesma gravidade que me segurava ali, deitado de barriga para cima, sem cair para o alto naquele imensidão abissal. Tudo isso, constituído de partículas que guardam a mesma imensidão e profundidade, mas na sua pequenez!!!
Enquanto me sentia menos do que o parasita que fixa morada no cocô de uma ameba anã, diante daquilo tudo, me bateu uma percepção interessante. Aqueles colossos eram quase como que o testemunho da criação ou as pegadas do Criador. Mas nenhum deles, com toda a sua potência, era capaz de despertar e sequer postular ou discutir a existência do Criador, quanto menos se voltar para ele e agradecer por estar ali, por ter sido criado, enfim, por SER.
Para mim, ali ficou evidenciada a existência da minha alma, se é que tal coisa é passível de ser evidenciada. Um pedacinho de algo que não se vê ou se toca, mas que se faz sentir. Mais do que isso, um pedacinho de uma essência divina que, privado temporariamente da unidade com o todo, ou o colosso original que o criou, vive em um estado de inconformismo, tornando-se sedento por mais (sem saber do quê mais), adquirindo essa qualidade indomável, essa necessidade de ser completo de novo, sem saber muito bem como nem por quê.
No meio dessa agonia que experimentamos, na maioria das vezes inconscientemente, tentamos escapar dessa incerteza dolorosa e corrosiva nos cobrindo de uma casca protetora de egoísmo ou de materialismo, tentando preencher com coisas, com riquezas e com conhecimento aquele apetite que jamais poderá ser satisfeito por nenhuma dessas coisas.
Eu acredito em Deus, por motivos que jamais vou conseguir explicar, pois não é da natureza dessas coisas ser explicada. E, nessa minha crença, a pergunta que sempre faço a ele é: "o que você quer de mim?"
Eu não tenho a menor idéia do porquê de termos sido dolorosamente isolados do todo e postos para viver juntos, de maneira nem sempre tão harmônica, nesse lugar. Mas eu imagino que essa ausência de certeza é que dá valor aos nossos acertos. Cada sacrifício feito nesse mundo em favor de outra pessoa, cada gesto de desprendimento ou de bondade, adquire um brilho maior do que qualquer explosão solar é capaz de emitir, justamente por conta dessa incerteza. Não consigo imaginar maior privilégio e responsabilidade.
O triste disso tudo é que, mesmo acreditando em tudo isso, eu ainda vacile tanto em fazer aquilo que eu sinto que deveria estar fazendo. Ainda discuto muito com a minha mãe por conta de babaquices sem valor, mesmo sabendo que ela precisa muito do meu apoio e do meu incentivo nessa fase de ostracismo na vida. Ainda tenho o reflexo de guardar uma certa distância magoada do meu pai por conta das merdas do passado. Ainda sou pouco pró-ativo no cultivo da convivência com meus amigos, mesmo dos melhores, que a vida acabou isolando geograficamente. Ainda me privo de cultivar uma maior intimidade com as pessoas no meu trabalho e de me mostrar pronto a ajudá-las pois prefiro usar meu tempo livre para estudar ou cuidar das minhas coisas. Ainda me agarro ao meu senso de humor meio ácido (e que, muitas vezes, serve como uma boa máscara) e ao meu gosto por falar merda (muito bom, fala sério), ao invés de me dedicar a aproveitar as oportunidades que surgirem para criar uma intimidade mais verdadeira com as pessoas que vou conhecendo. Ainda não tive coragem e desprendimento para me dedicar ao trabalho social que venho sonhando desde criança.
Esses são só os chamados mais imediatos da minha alma. Ai de mim se eu pelo menos não tentar realizá-los. Mas, a despeito de toda essa pequenez, não posso deixar de me sentir feliz de pelo menos ter me permitido me fazer esse tipo de pergunta. Quando esse pedacinho de alma aqui voltar ao Todo, ao Criador, a Deus ou seja lá qual for o nome que se dê, só o que espero é não ter a sensação de ter perdido tempo aqui embaixo, isolado em mim mesmo e nas minhas coisas.
2 comentários:
Essas inquietações eu tb me faço em muitos momentos, pois quero fazer tantas coisas, ser um homem melhor, porém acabo não realizando coisas que acho que poderiam ser edificantes para minha alma e para o mundo. Muito bom o texto e legal ter vc de volta por aqui, agora com a visão de um pai!!!
Um servidor caiu aqui no trabalho de manhã, então tive bastante tempo para escrever.
Agora, estou pensando em fazer umas "Crônicas da Paternidade", acho que até o final de semana consigo.
Abs!
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